sexta-feira, 5 de junho de 2015

Fiscalidade “própria para consumo”

Nos últimos anos, a receita fiscal tem aumentado significativamente em virtude, por um lado do aumento da carga fiscal essencialmente no IRS e no IVA, e por outro, por uma maior eficácia - que se deve louvar - na cobrança de impostos.

Embora lamente que aparentemente a única forma de combate ao défice tenha passado apenas pelo aumento de impostos, Aníbal Campos, no seu editorial do METAL deste mês, lembra que nem todos os excessos devem ser permitidos, como o têm sido até agora, pela máquina fiscal.

E dá o exemplo inaceitável dos trabalhadores do fisco serem remunerados com o produto das cobranças coercivas. Tome nota da reflexão do Presidente da AIMMAP aqui.


"A máquina fiscal

É inequívoco que a receita fiscal tem aumentado significativamente ao longo dos últimos anos.
Como é sabido igualmente, esse crescimento resulta basicamente de dois fatores.
Em primeiro lugar de um aumento da carga fiscal imposta aos contribuintes em geral, sendo aliás certo que, desde o IRS ao IVA, passando ainda pelos impostos sobre os combustíveis, a subida tem sido generalizada.
Por outro lado, da enorme eficácia que a cobrança fiscal veio a adquirir.
Quanto ao primeiro fator, lamento que ao fim de tantos anos de intervenção da troika em Portugal, não tenha sido ainda possível conceber formas de combate ao défice que não passem por aumentar os impostos. E é mesmo verdadeiramente incongruente que um governo que muitas vezes se ufanou das suas credenciais liberais continue a tratar do problema do desequilíbrio das contas públicas com aumentos da receita em detrimento de cortes na despesa. Um governo alegadamente liberal que se sente confortável com impostos elevados e que ainda por cima se mostra incapaz de reduzir o peso do Estado na economia é sem quaisquer dúvidas uma verdadeira originalidade ideológica.
Devo confessar em todo o caso que, nas linhas que agora partilho com os leitores, gostaria especialmente de fazer incidir a atenção no segundo fator a que atrás aludo. Ou seja, na eficácia da cobrança fiscal.
Ora, a esse respeito, naturalmente que é vital para a democracia e para a economia de mercado que todos se sintam obrigados a pagar os seus impostos. Nesse pressuposto, é fundamental que ninguém possa sentir-se impune. Que todos sintam que a máquina de cobrança é eficaz face aos relapsos.
Dito isto, não posso todavia deixar de lamentar que a máquina fiscal tenha ela própria assumido uma postura de quase impunidade.
Todos os dias somos confrontados com notícias a respeito dos excessos da máquina fiscal. Inspeções arbitrárias, execuções não fundamentadas e penhoras verdadeiramente despropositadas. E a verdade é que a máquina fiscal se tornou num verdadeiro monstro que se autoalimenta e ninguém parece ser capaz de controlar minimamente.
É verdade que ninguém deseja uma administração fiscal instrumentalizada pelo poder político. Mas não é menos grave que o poder político se mostre incapaz de sequer proteger os direitos mais básicos dos contribuintes quando aquela os atropela.
Dir-me-ão que essa função de limitar os excessos do fisco é competência do poder judicial. E eu não tenho quaisquer dúvidas em acompanhar tal afirmação. Porém, todos estamos conscientes de que os timings da justiça são na maioria das vezes insuficientes para fazer valer os direitos e até a dignidade dos cidadãos e dos contribuintes em geral.
Em muitíssimas ocasiões os tribunais só podem intervir quando os danos são já irreversíveis. Pelo que a sua intervenção, na prática, acaba por ser insuficiente.
Impõe-se assim, cada vez mais, que seja o poder político a conter os excessos e a prepotência da máquina fiscal, balizando-a nos limites da ética e da legalidade
O governo e a Assembleia da República têm a obrigação de proteger os direitos dos cidadãos. E não podem transigir com práticas que os ponham em causa. Tão-pouco podem ser responsáveis ou cúmplices de medidas que potenciem a voracidade da máquina.
É por exemplo inaceitável que os trabalhadores do fisco sejam remunerados com o produto das cobranças coercivas de processos de execução fiscal. Mas infelizmente, é precisamente isso que vai suceder, pois como é sabido os trabalhadores dos impostos vão receber 5% do montante daquelas cobranças.
Isto não faz sentido nenhum. Em primeiro lugar por uma questão ética, pois a verdade é que esse sistema remuneratório é construído com base numa perspetiva de ilegalidade. Em rigor, quanto maior for o número de ilícitos fiscais maior será a remuneração dos trabalhadores do fisco. O que é uma absoluta perversão.
Em segundo lugar, porque um sistema dessa natureza estimula os excessos da cobrança fiscal e acaba mesmo por potenciar inúmeras injustiças. A tentação de instaurar execuções infundadas se já é, sem esses incentivos, muitas vezes difícil de controlar, correrá o risco de se tornar incontrolável se os incentivos existirem.
Há que colocar urgentemente um travão a estes desmandos. Queremos contribuir para a resolução dos problemas que afetam as contas públicas do país. Queremos também uma administração fiscal diligente e eficaz. Mas não podemos aceitar esta espécie de rolo compressor, que ignora os direitos dos contribuintes, desrespeita a legalidade e chega a negligenciar a dignidade dos cidadãos. Porque quando se aceitar que os meios podem ser impunemente sacrificados pelos fins, é a própria democracia que estará em perigo.  
Aníbal Campos
Presidente da Direção da AIMMAP"